ELAS & O DIREITO

O menino, os leões, a saúde mental e o direito

  

No início desta semana o país se deparou com imagens fortes de um jovem, chamado Gerson de Melo Machado, de 19 anos, que morreu neste domingo após invadir o recinto de felinos de um zoológico de João Pessoa, na Paraíba, tinha o sonho de domar leões e uma trajetória de vulnerabilidade e abandono. Após a confirmação da morte, a conselheira tutelar Verônica Oliveira usou as redes sociais para se despedir do jovem e relatar os oito anos de luta por tratamento para ele, que tinha transtornos mentais.

Enquanto a internet carimbava o rótulo de “criminoso” e lembrava as 16 prisões anteriores do jovem, a conselheira veio a público para lembrar de outra ficha: a de violações de direitos desde a infância.

Vaqueirinho, como era conhecido, foi atendido pelo Conselho Tutelar de Mangabeira dos 10 aos 18 anos de idade. Ele era filho e neto de mãe e avós esquizofrênicos e já havia sido interceptado em situações de risco antes.

Gerson, tentou pegar um avião para ir a África cuidar de leões mas foi interceptado no aeroporto que avisou ele tinha cortado a cerca e entrado no trem de pouso de um avião da Gol.

Uma criança destituída do poder familiar da mãe, impedido de ser adotado como os outros quatro irmãos. Uma criança que queria voltar a ser filho da sua mãe, que é esquizofrênica e não tinha condições de cuidar dele. Sua avó, também com transtornos mentais.

Gerson cresceu em acolhimento institucional, com histórico de transtornos de comportamento, crises psiquiátricas e acompanhamento pelo CAPS. Na adolescência, veio a sucessão de conflitos com a lei: furtos, infrações, prisões. Personagem falado em programas policiais e tratado como caso perdido.

Ele era uma criança em sofrimento, não o personagem caricato que viralizou.

Não estou aqui a serviço de absolver crimes nem de demonizar quem se assusta com as imagens. Mas é preciso lembrar que nenhuma tragédia nasce na hora do vídeo. Ela é construída ao longo de anos em que família, Estado e sociedade falham juntos.

Gerson não era só o rapaz que entrou na jaula da leoa.

Era o menino que queria voltar para uma mãe doente.

O menino que sonhava com leões porque talvez nunca tenha sido tratado como gente.

E é por isso que, não cabe só choque. Cabe silêncio, responsabilidade e um incômodo enorme: quantos outros “meninos sem juízo” estão por aí, prontos para virar apenas mais um vídeo de tragédia no feed?

Esquizofrenias, transtornos delirantes, psicoses induzidas por drogas e psicoses enxertadas foram detectados em pessoas em situação de rua, assim como casos de agressão, crimes gerados pelo preconceito. Dentre os moradores de rua, aproximadamente 10% são psicóticos. Pessoas que levam uma vida solitária, desamparada, com baixa condição higiênica e, também por isso, ficam sem tratamento, uma vez que serviços de saúde

Se em ainda os negligenciam.

Entre 30 e 35% das pessoas em situação de rua apresentam também transtornos depressivos recorrentes, com casos de distimias, transtornos de bipolaridade de humor e comorbidades, que são transtornos de personalidade e de conduta atrelados.

Se em lares estáveis o tratamento de doenças psiquiátricas é um tabu, em razão do preconceito existente sobre as doenças e questões de saúde mental, viver em situação de rua dificulta o acesso a estes tratamentos e, a vivência solitária dificulta a percepção de que algo de errado se passa.

A Constituição Federal de 1988, estabelece, em seu artigo 196, que "a saúde é direito de todos e dever do Estado". Este dispositivo inclui a saúde mental como parte integral do direito à saúde, dando base para a implementação de políticas públicas voltadas à saúde mental e reforça a responsabilidade do Estado em assegurar que todos os cidadãos tenham acesso a cuidados adequados.

A Lei 10.216/2001 estabelece que o tratamento da pessoa com transtorno mental deve ser realizado preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Ela também assegura direitos fundamentais aos pacientes, como o direito a receber um tratamento humanizado e a viver em sociedade, com plena inserção social e familiar.

Além disso, a lei proíbe a internação de pessoas com transtornos mentais em instituições asilares, salvo em casos excepcionais, e prevê que a internação psiquiátrica, quando necessária, deve ser autorizada por um médico e comunicada ao Ministério Público, como forma de proteção dos direitos do paciente.

A questão da imputabilidade penal das pessoas com transtornos mentais é outro ponto de interação entre saúde mental e direito. O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 26, prevê que é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, era, ao tempo da ação ou omissão, incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de comportar-se de acordo com esse entendimento.

A relação entre saúde mental e direito no Brasil é complexa e multifacetada, abrangendo uma vasta gama de direitos e proteções assegurados pela legislação. A evolução das normas jurídicas reflete um compromisso crescente com a promoção de um tratamento digno e humanizado às pessoas com transtornos mentais, garantindo-lhes plena cidadania e proteção de seus direitos fundamentais.

O desafio que se impõe é a efetiva implementação dessas normas, garantindo que as pessoas com transtornos mentais, como Gerson, tenham acesso a cuidados adequados e sejam plenamente integradas à sociedade.

Fontes:

- https://www2.ufjf.br/noticias/2018/10/06/vulnerabilidade-de-quem-mora-na-rua-se-acentua-com-transtornos-mentais-aponta-psiquiatra/#:~:text=Adoecimento%20mental%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20de%20rua&text=Entre%2030%20e%2035%25%20das,personalidade%20e%20de%20conduta%20atrelados.

-  https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-relacao-entre-saude-mental-e-direito-no-brasil/2664869343

- https://www.infomoney.com.br/brasil/jovem-morto-por-leoa-possuia-transtornos-mentais-e-16-passagens-pela-policia/

Por Karin Frantz – OAB/SC 22.701