Supermercadistas apostam na Black Friday para aumentar o faturamento

Imagine chegar à vida adulta carregando uma dívida de milhares de reais por um contrato que você nunca assinou, e pior, firmado por quem deveria zelar pela sua segurança. Essa é a realidade de muitos brasileiros que tiveram seus CPFs usados na infância ou no início da vida adulta por pais, responsáveis ou familiares para abrir empresas, financiar bens ou assumir dívidas. Invisível por muito tempo, essa forma de violência patrimonial é atravessada por laços afetivos e dependência emocional, o que dificulta a denúncia e o reconhecimento legal.
Seguem algumas situações narradas por vítimas.
O caso da paulistana Paloma Yumi, 36, advogada, é um divisor de águas. Ela foi a primeira vítima a processar os pais pelo uso indevido de seu CPF na infância, e vencer na Justiça.
A fraude começou quando seus pais a emanciparam, aos 16 anos, para torná-la sócia de uma empresa de venda de planos de telefonia móvel. Paloma foi levada a assinar documentos, assumindo responsabilidades empresariais sob o argumento de "ajudar a família". "Eu só assinava e nem lia. E eu não tinha coragem de dizer não, porque era pai e mãe. Você confia," relata.
Ao atingir a maioridade, Paloma já acumulava dívidas que somavam cerca de R$ 6 milhões, valor que mais tarde saltou para quase R$ 20 milhões, incluindo ações cíveis, trabalhistas e bancárias.
"Quando eu soube que meu nome estava com essa dívida, que era tipo milhões, eu nem consegui entender na hora. Parecia uma piada."
Por anos, Paloma dependeu de terceiros para operações financeiras básicas e viveu sob medo de novas cobranças. Ela também perdeu chances de crescimento na carreira.
Durante muito tempo, consultou colegas de profissão, que lhe diziam não haver solução: como emancipada, era civilmente responsável por tudo.
Em 2020, uma amiga acreditou em sua história e assumiu o caso. Paloma moveu uma ação contra os próprios pais, um processo doloroso, e, três anos depois, teve a inocência reconhecida pela Justiça.
“Tive medo de prejudicá-los e da Justiça achar que eu fazia parte do esquema deles. Medo da dívida estar prescrita, afinal, levei 15 anos para entrar com a ação. Não era justo ter que pagar por isso. Meus pais ficaram aliviados por tirar esse peso de mim”, relata ela.
Apesar da vitória, a sentença não se aplica automaticamente aos demais processos. Ela precisa peticionar individualmente cada um deles, o que significa que, mesmo inocentada, ainda pode ser responsabilizada financeiramente por ações paralelas.
Para outra vítima, Renata, a fraude começou quando tinha seis anos, após um familiar convencer sua mãe a usar o CPF dela e o da irmã na abertura de empresas. No papel, virou dona de uma pizzaria e de uma cerâmica. Em casa, visitas de estranhos e cartas com termos desconhecidos se acumulavam, só mais tarde ela entenderia que eram oficiais de justiça e cobranças.
Os efeitos na vida adulta foram imediatos: "Tentei abrir conta, pegar financiamento e tudo travava. Tive a conta bloqueada para pagar dívidas da empresa. A sensação é de que você passa a vida provando que não é culpada de algo que nunca fez," relata.
Renata só conseguiu limpar o nome aos 28 anos, com ajuda da mãe, que nunca esteve envolvida no golpe. Ela transformou o trauma em ativismo e se tornou uma das idealizadoras da página no Instagram "Criança Sem Dívida", que alerta para o combate a fraudes financeiras como: uso de identidade infantil, coerção de jovens maiores de 18 anos ainda dependentes dos pais e emancipações forçadas. A causa também defende mudanças legais para proteger crianças e adolescentes.
A especialista em branding, Letícia (nome trocado a pedido da entrevistada), 27, carrega desde bebê o peso de uma dívida que nunca contraiu. Seu nome foi incluído no quadro societário da empresa da família — uma fábrica de roupas de couro — em 1998, quando ainda tinha meses de vida. A empresa, pertencente aos pais, entrou em falência e deixou uma série de dívidas e processos trabalhistas.
Letícia depende de terceiros para realizar operações básicas, como abrir uma conta bancária ou receber pagamentos. Ela também já sofreu bloqueios na conta em que recebia a bolsa de mestrado.
"Durante meus dois anos de mestrado já ocorreram três bloqueios judiciais. Então, tive que pagar parcelas absurdas do meu próprio bolso. Depois, pagar advogados para fazer o desbloqueio”.
A jovem relata que procurou ajuda jurídica diversas vezes, mas que a resposta é sempre a mesma: não há solução legal. Além do prejuízo financeiro, a exposição pública também a afeta profundamente. "Hoje, se você digitar meu nome no Google, vai encontrar processos trabalhistas, não quem sou”.
Para os que acreditam que se trata de casos pontuais, segue uma informação que certamente irá espantá-los, o INSS liberou 12 bilhões de reais em empréstimos consignados em nome de crianças. Esses empréstimos foram liberados para pais, representantes legais, de crianças que recebem BPC, benefício pago para crianças de baixa renda com alguma deficiência. Existem casos de bebês com meses de idade e já endividados.
Em agosto desse ano o INSS cancelou a regra que possibilitava os empréstimos, por determinação judicial. Mas ainda existem 763 mil empréstimos consignados ativos, com valor médio de R$ 16mil reais.
Embora o objetivo fosse ampliar o acesso ao crédito para famílias em vulnerabilidade, na prática isso abriu espaço para fraudes, abusos e endividamentos das crianças.
O atual presidente do INSS, Gilberto Waller Junior, diz que a instituição está revisando todos os acordos com as instituições financeiras. Informa ainda que desde maio (quando assumiu) não permite novos empréstimos consignados sem que a biometria do próprio beneficiário seja cadastrada.
O uso do CPF de filhos menores por pais não é considerado crime no Brasil. A responsabilização é apenas civil, cabendo ao filho, ao atingir a maioridade, recorrer à Justiça com ações de danos morais ou de restituição.
Em casos de fraude por terceiros, quando a prática irregular é cometida por parentes próximos, como tios, primos ou outros familiares, a especialista enfatiza que o caminho é jurídico: registrar um boletim de ocorrência e ingressar com ação de inexigibilidade da dívida.
Quando o assunto é a proteção legal de crianças e adolescentes, está claro que há uma brecha na legislação. Embora o ECA esteja pautado nos princípios da proteção integral e do superior interesse da criança e do adolescente, não há dispositivo específico que impeça menores de figurarem em contratos sociais de empresas.
Diante desse cenário, o uso do CPF de menores em empresas ou em empréstimos consignados é uma brecha grave do sistema, e expõe crianças e adolescentes a riscos patrimoniais e legais indevidos que necessita de correção legislativa imediata, sob pena de causar danos irreversíveis a uma geração de crianças e adolescentes.
Por Karin Frantz
OAB/SC 22.701
Fontes:
A vida dos filhos que herdam dívidas milionárias dos pais
PDL 03/2025, você ouviu falar?
Deixe seu comentário