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CONVERSA AFIADA

Depois da chuva

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.” Eclesiastes 3:1

Dois dias após as fortes chuvas ocorridas em nossas cidades, como feito em inúmeras oportunidades em minha vida, com a colaboração financeira de amigos, fomos, meu marido e eu, nas áreas atingidas a distribuir kits de higiene pessoal e produtos de limpeza, pois evidentemente a pressa das famílias era imediata. Não poderíamos esperar pelo cadastro das famílias no CRAS. E, realmente, pensando bem, o cheiro do lodo é algo indesejável até mesmo por alguns minutos, imagina em toda a casa. 

Relato essa experiência, pois foi a primeira vez, em muitos anos dessa prática em auxílio ao próximo, que fui tomada da aspereza e arrogância de (algumas poucas) pessoas que estavam com a lama até a cintura.

Foram pelo menos quatro situações em locais diferentes, das quais duas fazem-se necessária explanar para uma reflexão importante sobre a qualidade humana.

Uma. Certa pessoa pediu-me um outro modelo de vassoura. Aquela que eu tinha para doar não lhe era boa. Na verdade, é exatamente o modelo que eu uso na minha casa. Sempre achei muito boa.

Duas. Com o carro parado no meio da rua, ou melhor, do que sobrou dela, já que havia lama e buracos de todos os lados, um automóvel passou ao lado em velocidade compatível, ou seja, quase parando e emitiu o alerta num alto e bom tom (impronunciável na escrita) que era necessário que eu estacionasse o carro, pois meu veículo estava atrapalhando os demais. Olhei para frente e vi apenas o veículo da pessoa e o meu. Olhei para trás e não vi ninguém. Quando, enfim, olhei para mim, vi meus pés afundados em pelo menos 15 centímetros de lama, olhei para meu marido que dirigia, observei nosso carro, olhei também o kit que eu segurava para entregar a uma família que aceitara a ajuda e percebi que os desastres naturais arrastam a todos nós por um motivo único: HUMILDADE.

Bem, dizem que iluminar-se é acender a claridade do discernimento na mente e no amor. Qual a forma para vivermos uma vida dignificante? Por que o Poder Púbico tem dinâmicas que, às vezes, não compreendemos? Foram perguntas que me fiz imediatamente.

O ser humano é arrogante e egoísta por natureza. A ideia da larga trajetória na vida terrena é exatamente essa, aprender com o convívio, e expulsar os hábitos automáticos, os impulsos imediatistas, as heranças ruins e envolver-se em experiências que possamos aprender o desprendimento pessoal e a solidariedade (ali, bem no início da verdadeira caridade).

Estava eu agindo de acordo com a doutrina cristã? Ou estava ali satisfazendo meu próprio ego em dizer que ‘eu ajudei’. Há quem não queira ajuda. Quem estava sendo impulsivo e arrogante? A pessoa que queria escolher o produto ou quem entregava atrás de algum júbilo na tentativa de elevar a moral cristã? Quem era imediatista: aquela que queria passar por cima de meu carro ou eu que estava adiantando ao serviço público que ao que verifiquei está sendo contemplado na melhor forma. Sim, aprendi que o serviço público não é imediatista, mas, justamente, porque algum tipo de burocracia se faz necessária a avaliar, especialmente, quem é o verdadeiro necessitado. Também não poderia deixar de refletir sobre a aptidão do povo brasileiro em acreditar que o Estado tenha que dar tudo. Querem tudo, mas mantém a arrogância de querer ao seu modo.

O que é dado carrega alguma honradez e dignidade, mas nem sempre é recebido desta forma. Às vezes, humilha.

Como podemos agir com dignidade moral diante das catástrofes naturais? Não há culpados. Não haveria tubulação suficiente a aguentar tanta água. Locais intocados desceram avalanches furiosas de terra. A dignidade é algo que se conquista. E se conquista com humildade e perseverança.

O que podemos aprender com tudo isso? A vida é feita de gozos fugidios, ou seja, efêmera, não tem duração. Não somos perpétuos. Em duas horas de chuvas perdemos casas, estradas e, o mais significativo, perdemos vidas. Há que se ter algum mérito em viver tal calamidade. E tem. Não há como não compreender que por mais que façamos, por mais que pensemos saber fazer, por mais que acreditemos administrar tudo, nada supera a verdade de Deus. Não há como zombar dos princípios religiosos. Quando não se aprende pelo amor, se aprende pela dor.

Aliás, convém falar de um conto chamado “De quanta terra precisa o homem?” Há muita terra, mas Deus permitirá que eu viva nela?

Nesse pequeno conto, Liev Tolstói narra a história de um camponês que, ao desconsiderar sua vida tranquila com pouca terra, acreditou que para viver melhor precisaria de mais. Desafiou o diabo e, na ânsia pela conquista de mais, perdeu completamente a razão.

Certa feita o camponês chamado Pahom conheceu seu chefe. O chefe prometeu que se Pahom percorresse terras durante um dia voltando ao mesmo ponto, tais terras seriam suas. Pahom com seu capataz correu quilômetros para fazer o circuito de terra que seriam suas, porém, ao chegar ao ponto inicial, caiu. O capataz olhou para ele e ele estava morto. Ali mesmo o capataz cavou uma sepultura do tamanho suficiente para que Pahom coubesse deitado lá dentro e o enterrou. “Um metro e oitenta, da cabeça aos pés, era o que bastava.

Essa é a linha tênue que separa o suficiente do bastante, a humildade da ganância.

Teremos tantas quantas catástrofes naturais Deus providenciar como oportunidade de aprendermos. Santa Catarina é palco de inúmeras tragédias nesse sentido, mas a solidariedade humana ainda é superficial e colabora somente com o próprio círculo da dor.

Ninguém se ergue no mundo sem enfrentamentos. Foi um grande aprendizado. Mas continuarei a buscar minha elevação e manter minha luta para ser melhor ainda que não seja bem vinda em todos os lugares. Depois da chuva, façamos o que é preciso. Eu sempre vou auxiliar não em ostentação, mas em verdade aos meus princípios religiosos.

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